Liliana Heer

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©2003
Liliana Heer

Repetir a Caçada
Ibis Libris
Río de Janeiro, 2018




tua fragilidade, à qual simone martini
tivesse dado o golpe de misericórdia.

Paco Urondo




Quando fiz quatorze anos, minha mãe propôs que nos suicidássemos. Na verdade, ela não usou essa palavra, foi uma simples sugestão isenta de emoção. Disse e não disse, falou da água e da dificuldade entre alcançá-la e torná-la imperecível. Bastaria cairmos juntas, abraçadas, radiantes.  

Estávamos no porto, fazia calor, andávamos de braços dados, como se caminha nos pequenos povoados; a sombra dos corpos marcava a proximidade do meio-dia, sua lentidão vegetal.

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Vasos sanguíneos prolongam ações anteriores, enxertam, iluminam um fato. Humor na península. Presenças orgânicas.

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Entre aquela mulher e a filha que eu era então, tudo parecia demasiado próximo. Fluía uma corrente de excitação, uma leve inquietação plena de júbilo. Não importava que repetíssemos as mesmas coisas, ao serem refeitas adquiriam outra densidade. O oposto do “Nada tínhamos a nos dizer” que levou Meursault a internar sua progenitora num asilo a oitenta quilômetros de Argel. Com minha mãe era diferente. Ainda assim, um dia emigrei para uma cidade, depois para outra e foram desaparecendo os anos, mas não meu apego àquela mulher. Não sei se o encanto residia nas histórias ou em sua voz. O tom de alguém que tem acesso a inúmeros mundos sem necessidade de visitálos. Ela conhecia o benefício da paródia e era ao mesmo tempo perita em captar o imediatismo. Forja de epitáfios. Uma amálgama mantida em temperatura máxima. Graças a um definido estilo naïf, cultivava a ciência do não domesticável. Como se tivesse contemplado até a exaustão conseguindo ver que o casamento era uma estafa, uma desolação o celibato, um desvario praticar a prostituição, obsceno depender de horários, uma bomba-relógio ser mulher.

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A cópia daquela modalidade (fugidia perante os estereótipos) serviu-me de instrumento para agir com serenidade diante do inesperado. Paisagem de jacinto e enxofre. Ausente o tom de melodrama em que termina caindo até o ideal mais sagrado. .

Anulada a autoridade, descartado o heroísmo, trata-se apenas da arte do verossímil: escola de imitadores.

Desenhar um elefante baseando-se na lembrança dos melros.

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Aquele aniversário: entre o cais e a água havia poucos metros de distância. Ainda posso ouvir o som da imensa superfície contra os cascos dos barcos. Altos, vazios, de repente velozes. Creio que o sol nos fez adiar a ideia. Ninguém mencionou o medo da traição (no suposto caso de que alguém salvasse apenas uma). Libertas da morte, continuamos passeando sem chegar a submergir.

Maybe the sun é o título da canção cuja letra escrevi para que o suicídio, que não havia acontecido, encontrasse na música sua revelação. Tempos depois, um namorado, exercendo a curiosidade das suspeitas, ao examinar minha pasta de inglês, obteve uma resposta próxima da mentira e da verdade. Para mim, foi também um mistério. Teria incorporado a canção ao seu repertório de blues porque a apreciava ou para apropriar-se de um segredo?

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Escrever em inglês me pareceu uma boa estratégia. Trocar uma palavra por outra, retorcer o menos e o mais. Assim narrei a cara ameaçadora que exibem alguns dias, desprovidos de nitidez, saturados de fragilidade. Um testemunho tonal (a canção) do dilema do ocultamento.
 
Em meu último romance, Maybe the sun é cantada por uma atriz loura, gorda e acabada. Ela repete essa canção nas noites de insônia para entreter Wilson, como se Wilson fosse um anjo e não pensasse em apertar-lhe a garganta até fazê-la calar.

A atriz é uma coadjuvante menor. Pura montagem, nenhuma espera; a ação atravessa o argumento com arame farpado.

Utilizo desvios, um disfarce conveniente a toda biografia. Pegadas reduzidas a uma letra que deixa cair versos como flores sob a neve.

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A mãe de Meursault estava num pequeno galpão. Reluziam os parafusos na tampa escura do esquife. O brilho da luz sobre as paredes caiadas feria os olhos do estrangeiro. Perguntou se alguma lâmpada poderia ser apagada.
– Não, a instalação é assim – respondeu-lhe o zelador, – ou tudo ou nada.

Num canto do galpão, de costas para o esquife (o rosto coberto), com a naturalidade de uma aranha, uma enfermeira tecia. Cuidara da anciã e presenciara o desenlace. Prudente, silenciosa, absolutamente consciente de sua função de testemunha, a enfermeira acumulava confissões, frases ditas no cochilo letal dos que não tardam a partir. “Nunca se perde o que realmente se teve”, foram as últimas palavras da mãe de Meursault. Seriam dirigidas ao filho?

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Caminhávamos pelo cais convencidas de que a qualquer momento pularíamos, não com a intenção de deixar a vida (um detalhe entre imortais) e, sim, para selar um pacto, um nascimento invertido, o lema que seria estandarte da minha geração: “Viver perigosamente até o fim”.

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Escreve-se sobre o que ainda não se sabe, dominando a exaltação, com a técnica de abertura dos leques. Letra nos orifícios do tempo, cerimônia sem rezas. Camadas e camadas de pedra negra.

Escreve-se para voltar a sentir aquela genialidade alegre dos primeiros dias, quando o torniquete da precisão não era imposto e em cada história alguma frase pertencia à charada como a nervura do ferro nos vitrais.

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Demarcar com carvão vegetal as vértebras da narrativa. Não vai acontecer que o protagonismo do estrangeiro e da atriz se exceda em cada parágrafo e ninguém possa acompanhar a trama do aniversário e do cais: mãe e filha a ponto de cair.

Como ignorar que uma cena semelhante foi dirigida por Juan Vigo, em O Atalante e, muito depois, por Kusturica? Sob as águas do Sena e do Danúbio, uma jovem nada até o centro da terra com vestido de noiva e grinalda de flores. A vidência substitui a visão. Ruína, promessas, legados. Tratase de desfazer o espaço, não menos do que a intriga. O bestial e o sublime. No primeiro filme, a queda dos amantes não tem fim, converte-se em movimento ascendente, inaugura uma justiça para além do humano.

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Memória de palimpsesto. Por muito tempo pensei que naquela manhã uma das duas teve a intenção de desviar o propósito, mas nunca soube qual. Às vezes, acho que a ideia de pular foi uma das tantas fantasias que costumavam me ocorrer e minha mãe escutava como um leitor manso, sem fazer comentários ou censuras, movendo a cabeça com suavidade e me chamando pelo diminutivo.

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Nunca se confessam as histórias terríveis. São estados sem nexo, chagas incuráveis que vivem na certeza de ter acontecido. Buscam a solidariedade do insone, as cores de uma aquarela ferida.

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