Liliana Heer

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©2003
Liliana Heer

Hamlet & Hamlet, Ibis Libris, 2018

 

     

O CIRCUITO

 

      Sombra de minha sombra, pai amado, passaram vários séculos desde a tua última aparição e logo hoje me atrevo a invocar-te. Faço-o sem desculpas nem preconceitos, do modo mais franco, sabendo que o jogo com a hora do encontro domina meus passos, retarda-os.

      Muito se escreveu sobre mim, dei espaço a atitudes tão variadas como vários foram meus cuidados para satisfazer algo imperioso.
Alguém rascunhou este esboço: Hamlet, o dandy epigramático e enlutado da corte da Dinamarca, que nas antessalas de sua vingança lentamente distribui pródigos monólogos ou brinca tristemente com uma caveira. Assim, vivia de luto , era o príncipe vagabundo que falava consigo mesmo, transformava palavras em palavras, o filho sombrio e nem sempre bem comportado com a dignidade de dandy abalada.

      Disseram ser um bobo, negou-se a admitir a turbulência do império, que vivia de costas para o mal-estar sem ouvir ninguém por um mau hábito: deixando-me cair em falsas elucubrações buscando a razão e a desrazão de alguns feitos que ultrapassavam minha alçada.

 

Poderiam me fechar em uma casca de noz e eu acreditaria ser o rei do universo, cheguei a dizer enquanto o jovem Fortimbrás assediava se juntando a miseráveis para redimir as terras que seu pai havia perdido. Quão justa responsabilidade a desse príncipe: ter recebido uma herança à altura da façanha que iria alcançar. Uma manobra plena de futuro, sem intrigas de família.
Bom seria aceitar que apenas a política permite a coordenação dos acordes, como pude ignorá-lo?
Pobre cetro.

As acusações chegaram até a mim, entregar de presente nossos domínios aos noruegueses não merece ser elogiado, isso é bem certo.

Houve também elogios, me ouviam meditar sobre a desordem, sofrer o combate entre a véspera e o alvorecer, contemplar a obscura mudança de guerra em paz. Alguém disse que me tornava outra pessoa quando falava a sós, teve o cuidado de observar as alterações de meu discurso. Fogo rompido, relâmpagos loquazes. A liberdade tem o mesmo gênero da miséria voluntária.

Eu sei, sei todos os nomes e ações de quem nos sucedeu, mas então ninguém sabia, a função era outra, o escândalo ainda estava sob-rédeas.  

 

Falava sozinho, pai, alto e mentalmente. Envolto nas redes do infortúnio, tudo perdeu sua integridade natural, os sinais deixaram de ter o valor que tinham. Sinais dispersos de aspecto enganoso, malefícios à direita e à esquerda anunciando mentira, falácia, derrota.

Estive isolado de tal forma que, na loucura, cheguei a uma conclusão: não há solidão em quem escutamos.

Ainda que hoje considerem essa capacidade da mente, denominada introspecção, um mecanismo elementar da pregnância do pão em leite morno, naquele tempo era um recurso desconhecido. Eu alternava sentir a consequência da linguagem, sem necessidade de apelar aos outros ou ser permeável a influências mal embasadas.
Várias vezes meditei longamente, tenho uma lista dos temas ou, para ser mais preciso, as variações que debati em cada solilóquio; o núcleo era de uma persistência impenetrável. Um bacilo, vingar.

Em algum momento, voltarei à fúria de pertencer a uma geração tardia, destinada a herdar crimes e ofensas alheias à sua origem. O estado de dívida, a confusão do total indivisível, o ser e o reino.

Se Hamlet tivesse podido se abster das almas, escreveu um teórico insinuando minha tendência a alucinar, como se a essência de um nome não ficasse suspensa, intriga, instância sempre futura.

Dançavas em meus olhos, Rei.

Desde já te digo que por ti não o soubeste: jamais desprezei tuas intervenções. Depois do chamado eu devia aprender, e não se aprende a viver, pai.

 

Começar traz consigo o risco de supor um começo melhor, desprovido de estacas, tão fácil como pescar enguias. Escuridão nunca tão escura, relevos de fervor, incerteza.

Poderia perguntar: por que me chamou se eu não o matei? Acima, abaixo, que importa? Questionar o inexplicável de antemão se parece a negar o ocorrido. Talvez sua voz seja o ponto de chegada e, a condição de filho, somente violência.

Sem ânimo de medir as dobras do sofrimento, posso imaginar a frondosa inquietude. Não ver o voo da alma ante o último suspiro cobre as esperanças com urtigas.

A velha morte, escreveu um sábio alemão em pactos eternos, a velha morte esqueceu seu rápido poder, é difícil saber se está viva ou em algum círculo do inferno. Antes a alma voava, agora ela resiste.

 

A linguagem guarda tempestades, oculta dores, ameaças, desprezos. É um lamaçal. Nunca somos suficientemente sagazes, cedo ou tarde o rumor das palavras expele seu veneno invisível e ao mesmo tempo imuniza como o melhor dos antídotos.

Ó, débil consciência, bússola saciada de embriaguez e ingenuidade, deixa-te perfurar pelo som, torna-me incrédulo, permite-me apreciar o erro, a confusão, o sem sentido, ajuda-me a combater o herói trágico que há em mim.

 

Hamlet, Ham, deves ceder, dar as boas-vindas aos conflitos.

Assim chamava a minha atenção, com o diminutivo da infância mais terna; estranho período em que a nitidez de teu rosto se desvanece e em seu lugar está o corpo alegre do único homem que me deu ternura.

Deve ter sido ele, mil vezes beijado carregando-me às costas, dando cambalhotas como um cavalo de circo para me divertir.
Foi Yorick. Quem, então?
Ele, com sua imaginação graciosa e fecunda sussurrava: Ham, Ham, onde se esconde o príncipe Ham?

 

Quando o tempo passa e torna a passar sem testemunhas nem pressões a memória improvisa, se torna pródiga, mostra detalhes alheios, exuma minúsculas sequências roídas pela tentação do vazio. Brotam lembranças estranhamente vivas: enfeitiçantes, voluptuosas, paralelas. Ciclos e ciclos de gerações deixam bulir pruridos familiares que convergem em uma algazarra de rameiras sonâmbulas.

 

A nobreza, o nome, sua inscrição – pedra, metal ou alento – tem as consoantes alteradas; nem sequer fui único, além de tua cópia, divino Rei Hamlet, existiu outro e mais outro. Sonhos heroicos, enxertos, repetições; já não se distingue a lenda da biografia.

Dizem que Amleth vingou o Rei sem titubear, mas não é certo. O enérgico príncipe não se privou de matar o conselheiro atirando-o aos porcos; mudou o destino da carta que continha sua sentença, pediu ao rei da Inglaterra a mão de sua filha, casou-se. Não te parecem demasiados desvios para a pressa de um vingador? Evidente, o assassinato foi público, com testemunhas que certamente forçaram o filho a lavar a afronta.

Ação, reação, desfecho. Alva crepuscular. Um efeito lógico, mecânico, sucessivo, favoreceu o descanso da vítima ou bem o descanso dessa vítima não rompia a magnitude do jogo. Sobre a resignação e o repouso das almas em fuga se meditou longamente; sofrer um acidente mortal, ser eliminado por alguém não é sinônimo de ter tido um mau fim, o mal-estar depende do estado em que nos encontra a vítima.

Devo reconhecer tua sinceridade, viver na ignorância parece imperdoável. A graça não estava ao seu lado na escuridão do jardim, exigiste grandes purgações. Os horrendos delitos consumados te condenaram a vagar à noite, um ardor que pouco tinha a ver com a vingança.

Em vários sentidos, mais além do retorno patronímico, teu caso diferia de Horwendil. Uma corrente sem certos elos: não havia esposa firme ajudando a enfrentar o castigo, era visível o desamor, oculto o crime.

Minha atitude também foi outra, demasiado orgulho, demasiada soberba, a meio caminho do Príncipe da Lenda. Ele simulava melhor, viu executar o pai e se sentiu transtornado. Um mesmo ato, catástrofe. Agravado o umbral que separa a prudência do coma desperto. Um louco uivando como uivam os cães quando vigiam. O instinto sem amo.

Eu deveria esperar até que retornasses, mas o tempo é implacável, não cura, revolve.

 

Os processos fermentam, desatam raros humores, o duelo gera letargia, exalta, oprime, confunde, amplia.

Tudo teria sido diferente se tivesses vindo de imediato, a mesma sesta, com as mesmas roupas, enjoado, trêmulo, coberto de crostas. Antes do desencanto adúltero, antes da coroação do usurpador, impondo vingar aquele que se vingou, olhando para o futuro, atento à sucessão, com o direito sanguíneo, fazendo valer tua post dying voice para lançar terra sobre a senda da dúvida.

Também existiu Hamnet. Como esquecer meu suposto irmão gêmeo se tive de substituí-lo na puberdade? Morte, tristeza, afeição desgraçada e tentadora que provei viajando pelas veias do criador até obter o perfil de personagem. Shakespeare, sua doutrina prodigiosa de tubarão rompendo redes, dissipando ilusões. Imagens oblíquas de violência alucinada.

Não quis estender-me nesse caminho, somente rir da humilhação que é para os críticos explicar o artista usando dados biográficos.

De um Globe a outro, Hércules é sustentado por imortais. Convicção geral. O pai inspirado, a praga das trevas, os arreios do caráter, o labirinto agonizante, as paixões opacas, o sigilo.

Como se a primeira mentira tivesse asas.

 

Aqui estou, pai, imberbe e com cabeça descoberta, envergonhado por não ter um chapéu.
A moda e a moral espalham marcas, expressam a intenção de forjar antagonismos. Mas ainda, no jogo das estações prolonga seus contornos fundindo pompas e ruínas.
Make me a mask.

Acabo de chegar, mas não de barco, digo-o apenas para fazer o contraste. Nunca quiseste abandonar Elsinor, que equivale a ouvir: nunca terias deixado estas terras para procurar ninguém.

 

Os habitantes não são grandes viajantes, continuam ligados ao domínio, vagam, se escondem, vigiam. O tato dos objetos penetra-os aos poucos, transforma a paisagem em origem, prelúdio de um destino tranquilo, inexorável. Como se a essência de si mesmo fosse um gigantesco umbigo em torno da qual gira o mundo, e o desejo de posse pudesse destacar a inquietude, expandir as ânsias mutilando qualquer sinal estranho.
Saberá muito bem o que é estar alerta ao movimento, ao que poderia contaminar, exasperar, criar deterioração ou redenção. Não deixa de ser um hábil recurso para fugir da embriaguez do engano.

Vínculos distintos, pai, eu sei. Não pense que em alguns momentos não estranho a quietude, a repetição, o pulso, a tração de sangue. Uma silhueta na manhã cavalgando o poder soberano dá alento a raízes futuras.

 

Recorda-se das inscrições rúnicas? Sentias um prazer especial em ler a pedra cinzelada: aproveita a tumba , este é o espaço físico onde repousas e, além disso, é a tumba que construíram os antepassados quando viviam como tu.

Era um costume que te agradava falar dele depois, quiçá por intuição. O espírito da visita está intimamente ligado à ausência, dizias, mas nem sempre quem chega é quem se espera, às vezes brota um cavalo escoiceando os portões.

Alçavas a voz, te regozijavas em narrar façanhas, detalhes gloriosos ouvidos durante a batalha: dizem que a bigas das fúrias luta sem piedade com os guerreiros para aumentar a quantidade de mortos; o animal do herói é uma esfinge erigida entre as fontes, seu corpo munido com todas as armas deixa entrever uma cabeça ornada de lauréis.
Misturava fatos reais com divagações, itinerários sagrados, sutis, excesso de coragem e sacrifício.

 

Estranhos visitantes nos cercavam, pai. Uma mortal caminhada cheia de ordens lendárias: àquele que tiver lhe será dado e receberá ainda mais; àquele que ainda não tem o que tiver lhe será tirado.