Liliana Heer

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©2003
Liliana Heer

 

 

NÉON

NOTA DO TRADUTOR

O mundo de Néon nasce pelas mãos de Liliana Heer como se ela costurasse a trama que o viajante tradutor transporá ao imaginário dos seus mais novos leitores. E quem melhor caberia no papel de tutor neste processo de tradução, senão a fidelidade: ao conteúdo do texto de partida, às ideias e aos ideais de Liliana, à força das palavras escolhidas e à suavidade com que ela tece essa trama forte, que mescla muitos sentimentos antagônicos que caminham lado a lado, o tempo todo, no correr da trajetória de cada personagem, sejam os materiais e os imaginários. A Primavera Literária de 2018, no Rio de Janeiro, foi um evento que me proporcionou a rara oportunidade de encontrar Liliana e trocar mais do que dois dedos de prosa com a autora desta obra, cujo processo de tradução já ia adiantado, para além das minhas pesquisas iniciais. Foram dois breves encontros, mas suficientes para estabelecer-mos uma sintonia fina em torno do tema central de Néon, e criarmos uma relação de afeto em torno de mais esta obra gerada por Liliana. Essas oportunidades são raras, pois não é comum tradutor e autor se conhecerem pessoalmente, quando muito trocarem mensagens à distância, marcarem encontros on-line, mas quando uma confluência deste tipo ocorre, saem ganhando os leitores, neste caso, os da língua portuguesa. Duas características marcaram esses nossos encontros: paixão e força. A paixão pela escrita e a força que Liliana é capaz de atribuir a cada palavra no contexto de Néon. As conversas com Liliana foram de uma suavidade tão profunda, que pude captar a essência dos sentimentos e incômodos que ela procurou estimular nos leitores, no castelhano argentino, com a escrita forte que lhe é peculiar. A mim caberia traduzir essas sensações para os leitores da língua portuguesa, fazendo com que possam chegar a ouvir nossas conversas em tornos desses temas tão sensíveis, reproduzidos pela fortaleza de cada palavra, pela sonoridade de cada poema, pela fluidez de cada sentença, e assim experimentar do mesmo incômodo e da mesma profusão de sentimentos gerados pela autora. Nesse sentido, de nossas conversas restaram-me mais pesquisas e a responsabilidade de me dedicar a uma seleção criteriosa de cada palavra que findaram por gerar um Néon traduzido, de modo que ele funcione como um espelho do Neón original. Costumo dizer que “traduzir é a arte de seguir o autor lado a lado, sem dele se perder, mas dele se afastando, o mínimo necessário, se for preciso”. Para a tradução de Néon algumas “escapadelas” foram necessárias, de modo a me aproximar ao máximo da essência dos sentimentos mais profundos, do incômodo gerado pela riqueza da narrativa, expresso na força de cada palavra ou expressão cor-respondente em nosso código linguístico. A busca incessante de cada palavra traduzida que vestisse completamente o sentido de sua contraparte original tornou este desafio de traduzir em um prazer inenarrável, que espero ter conseguido transpor com a mesma paixão e força para os leitores da língua portuguesa.

José Luiz Correa

NÉON

I

Ele era Viajante. Ela, Costureira, mas poderia ter sido ao contrário, se ela viajasse enquanto ele costurasse. (Deixemos assim.)
Ela costura,
ele viaja,
sai pela manhã com um mostruário na valise e volta à noite com os pedidos e alguma peripécia para contar. Ela o escuta entreouvidos, não porque lhe falte interesse; o silêncio em que permaneceu durante o dia e o corte da tesoura seguem seu curso.
Ele saberá?
É provável,
há desvios,
modulações em sua fala.

Quando ela o encara, ele desconta, agrupa, simplifica; se a vê de costas, inclinada sobre algum objeto, ou com os olhos voltados para a janela, precisa dar explicações, fazer rodeios, até mesmo mentir.
Às vezes, a mímica é sua única alternativa. Tem três ou quatro recursos. Apropriar-se das anedotas dos amigos o desagrada. Não que isso tenha acontecido, tampouco tentou mudar o nome de alguma façanha para torná-la familiar. Sempre pensou que um imitador envelhece cedo.
Ele finge o contrário. Como alguém que carrega um diário e toma nota com o maior fervor do que desejou que tivesse acontecido; sua intenção é transformar a rotina em algo memorável. Dessa forma, começou a ler tudo que estava ao seu alcance, não apenas a ler, mas a forçar o enredo e fazer alterações. Sua ignorância não o intimida; pelo contrário, evita modelos do mesmo modo que no início da juventude afastou de si os Mandamentos. Essa forma de agir colore sua linguagem.
Falas afiadas,
um fundo cremoso,
rajadas.
Novos plasmas, ou o retorno ao folhetim?
Quando Deus quer matar o feiticeiro, ele fala, dando coragem à sua alquimia, colocando na boca das pessoas histórias incompletas. A brevidade de seus contatos o impede de continuar, argumenta. Sua boca é um tubo de ensaio.
Mestre da experimentação.
Primeiro, retorcer,
depois, estirar,
descobrir o tom que a deixe estupefata.

Não é simples conquistar o coração de uma mulher que tenha sido testemunha de incontáveis delitos.

Ela tem a visão de um clássico, os feitiços do isolamento, busca alívio entre tocar a água e desamarrar granizos. Seus dedos apalpam a beatitude do corpo: doçura violada.

No rigor da quietude, fermentam vibrações, respostas.

Se te chama, foge, repete instintivamente. O tímpano frágil,
atento à ressonância.
Uma cortesã com ouvido de lince.
Superstição e libertinagem.
Estado de alerta.
Sua memória guarda cada frase
e junto à frase:
ilhotas,
úmidas marcas de expressão.
Haverá tempo para escolher ou rechaçar.
O que entra e o que sai faz parte da sua vida.

Foi Carcereira no presídio do bairro, ali se conheceram.

Seu rosto produz evocações em quem estiver disposto a esquecer.
Costurar é um ofício posterior.
Arte de fuga.
As andorinhas voltam a ser andorinhas, mesmo que chegue o inverno.
Tortas de açafrão na terra e no céu.
Ela prefere não olhar para o Viajante enquanto ele fala, assim garante o desvio de rota. Uma lenta surpresa flutua pelas noites na sala, o peixe de prata ondula insensível aos alfinetes espalhados sobre a mesa.

Ele vai tomando coragem à medida que fala, exercita-se com súbitas imersões, traça curvas, arremete, explora. Suas palavras costumam desencadear nirvanas. Dá dois ou três passos em direção a ela como se quisesse e não quisesse se aproximar. Não precisa tocala, seu corpo a escasos centímetros tem a mesma eloquéncia que a sua voz.
por um fio e ofegante, conseguiu escapar da dívida de sangue e recompor a saúde selvagem de Claudel.
Cheiro de vaca e carne humana.